domingo, 31 de outubro de 2010

Ronron do gatinho



O gato é uma maquininha
que a natureza inventou;
tem pêlo, bigode, unhas
e dentro têm um motor.
Mas um motor diferente
desses que tem nos bonecos
porque o motor do gato
não é um motor elétrico.
É um motor afetivo
que bate em seu coração
por isso faz ronron
para mostrar a gratidão.
No passado se dizia
que esse ronron tão doce
era causa de alergia
pra quem sofria de tosse.
Tudo bobagem, despeito,
calúnias contra o bichinho:
esse ronron em seu peito
não é doença - é carinho

[Ferreira Gullar]

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Crônica de uma morte anunciada.

Primo Zé.
Era tanto amor no peito que o coração não agüentou.
Viveu 26 anos com tanto vigor e ‘saúde’ que nem os amigos sabiam que dentro dele tinha um marca-passo para controlar e segurar quando a emoção fosse grande.
Era só uma visita de rotina. Entrou, sorriu pros que estavam no corredor e disse pro médico, que tinha acabado de lhe dar uma bronca por passar tanto tempo sem se consultar, para que não se preocupasse que ainda não era hora de se livrarem dele.
Antes de o doutor dar o diagnóstico o primo Zé caiu no chão, o peito tinha explodido de amor e se espalhando na sala que todos, mesmo aflitos, puderam sentir.
Levado as pressas para a UTI começava assim a semana que antecipava o aniversário da prima que fez parte daquela infância tão peralta e que desde festa de entrada de ano não se viam, não ouvia aquele magrelo com a testa de aparar raio (herança da família) chegar à casa da vó falando:
- Velha, tu já tá se danando ai nesse quintal, né?
A vó achava graça e amava aquele neto, como ama todos os outros. Mas com ele era um amor mais especial, a família sabia que o coração um dia o trairia, só não sonhava que seria antes de ver o primeiro filho crescer.
Quem poderia prever quando era que aquele punho fechado ’ bombeador ‘ de sangue ia resolver descansar? Se soubessem talvez mais perto dele todos tivessem estado até o último dia.
O primo Zé que tinha a voz desafinada surpreendeu quando cantou pra esposa a canção que ela mais gostava numa igrejinha lotada no dia do casamento, todo mundo se orgulhou. O choro não se pôde evitar, embora casamentos fossem sinônimos de emoções exacerbadas para alguma escritora clichê, aquela imagem ficou intacta.
Primos, os irmãos de quem é filho único.
As danações que deixam mães, tias e vó com o cabelo branco bem mais cedo (herança de família 2) do que deveria eram expostas na mesa da sala de janta que mesmo pequena acolhia todos. Mesmo que breve aqueles domingos em família, que hoje se resultaram em datas comemorativas, servia para isso, para que os primos se juntassem na casa da vovó com todo aquele barulho, com aquela confusão gostosa que sempre dava uma sensação de felicidade completa quando dava 3 da tarde e todos resolviam ir embora.
Mas ninguém deixou de lembrar como foi bom terem vivido a infância juntos, inclusive lembrar-se do dia que ataram a rede e foram brincar de barco em alto mar:
-Balançando 1, balançando 2, lá vai o barco! Não! Não entra Zé, tu é grande, vai rasgar, vai rasgar!
E todo mundo caiu de bunda no chão e deu aquela gargalhada gostosa, gargalhada essa dada com o coração, corações que mesmo que se juntassem todos os primos não caberia todo o amor que o primo Zé tinha no coração grande.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

No escuro da dor, na dor do cinema...

Enquanto seus seios passeavam nos lábios dele ela gemia, gritava, sofria.
Com as orelhas frias e os pés molhados de suor ela tentava escrever na sala número 7 do cinema, enquanto passava algo na tela que não lhe interessava. Contorcia-se, rabiscava, se excitava.
Embora tivesse algumas pessoas presentes ninguém a ouvia, ninguém a notava, mesmo assim ela chorava, cantava e depois gargalhava.
Ele a achava louca, louca e incrível, incrível e idiota, mesmo com pouca roupa, mesmo com aquela voz rouca e mamilos enrijecidos por conseqüência do frio. Sentia o oposto, sentia aquele gosto, o gosto que nunca sentiu.
Então ela acorda quando o lanterninha foca a luz vermelha em seu rosto avisando que a sessão já acabou e que é hora de sair!

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

'A classe operária vai ao paraíso'


Como se não bastasse eu me deixar levar por aquela sensação gostosa de sentir o chão cru com os pés e notar quão sensível minhas mãos ficavam quando levemente se arrastavam os dedos no corrimão das escadas , tive que conviver com aqueles olhos que todos os dias me analisavam dos pés, paravam milésimos de segundos na minha cintura, e se terminava nos meus olhos.

Era assim que ele me via e não tinha menor pudor em acordar-me às 5 horas e 30 minutos da manhã mesmo que na noite passada tenha precisado dormir tão tarde por conta dos afazeres universitários. Sempre pontual, as vezes agredindo, me levava até o sofá na tentativa de 'enganar' meu sono, arrastava-me até o banheiro e fazia com que eu me arrumasse tão cedo para esperá-lo.

-Nathane, ele já chegou!
Minha mãe gritava. Talvez ela estivesse feliz, pois agora eu o tinha, embora com bastante sofrimento, ou talvez ela só estava feliz por eu estar viva!

Frio, musicava meus ouvidos com canções que eu não gostava e comentários dignos de serem ignorados, mas eu sorria, sentia-me forçada a sorrir.

TIC TAC TIC TAC TIC TAC esse era o som que me perturbava o dia todo.

Tem pão com manteiga, café sem açúcar, as vezes sopa, as vezes fruta, era isso que ele me oferecia , eu agarrava com afinco como se fosse tudo que me sobrasse naquele fiel horário e agradecendo por me tirar o hábito de não tomar café da manhã.

"Mas corre", essa era a condição.
"Bate o ponto", essa era a obrigação.
"Não senta, não conversa, não sorri! eu estou vendo, eu não quero nada disso"

Era assim todo dia, e enquanto eu obedecia fielmente todas as ordens esperava o melhor momento, o almoço que era coisa de rei (exagero).
Comia, deitava, não dormia, não conseguia, o tempo era pouco e ele queria que eu ficasse de pé, e eu somente pensava nos interesses, muito embora sempre fizesse questão de não ser interesseira.

"Vai, te mata, para de reclamar, tu tens que aguentar" eu pensava, eu pirava, enquanto voltava a fazer tudo de novo, do mesmo jeito, mas sem muito dom, na verdade procurava por um dom já fazia tempo...

Cansada ficava cara a cara com o relógio morrendo de vontade que esse dia se acabasse pra poder estudar e fazer o que gostava, chegar em casa e dormir pra que noutro dia ele me pegasse de novo, da mesma forma, e pior : pagando mal!

Foi assim que começou minha vida de proletariada que não se sabe bem até quando sobreviverá (tomara que pouco!) ...